quarta-feira, 25 de maio de 2016

Rever matéria dada (1977)... *

Remonta a 1977, pertence ao passado, mas, fazendo parte do meu livro Sombra da Minha Latada", mal poderia ficar comigo próprio se para aqui o não trouxesse - também porque hoje paira por lá, diz-se, a droga que tudo estraga...

                                               A QUARTA IDADE

"Da janela do "Jornal Novo", neste parapeito de Lisboa que é o Alto de Santa Catarina, vejo o Gigante Adamastor de costas e o monumento a Cristo Rei de frente. O Tejo está calmo e os barcos deslizam quase sem desfazer a quietude das águas que, lá mais adiante, espelham a Ponte que o 25 de Abril adoptou. Dir-se-ia que, de ambos os lados do rio, tudo reflecte a beatitude do Cristo Rei e da paisagem que tem a seus pés. Até mesmo para o Gigante Adamastor, que ele de frente, os braços permanecem abertos pondo fim a mitos e respondendo todos os dias à arrogância com a serenidade da Razão que os séculos não destroem e de que as catacumbas doutras paragens dão humilde testemunho, em galerias de Fé abertas pela força moral dos crentes. Parece, assim, que o mundo não tem problemas e que esta Lisboa de sol banhada, e quase sem nuvens, é o Eden que alguém, com Vontade Suprema, quis erguer na "Ocidental Praia Lusitana" de que fala o Poeta. Lisboa, vista da minha janela aqui do Alto de Santa Catarina, parece toda franqueza, sinceridade, mas é matreira, dissimulada. Os homens para quem também já o Adamastor não é mais do que uma estátua, não são capazes de receber o simbólico abraço que da outra margem lhes é oferecido. E se esquecer o granito da figura de Cristo Rei é natural, ignorar as catacumbas, que a distância até Roma não invalida, entristece e amargura.

No Alto de Santa Catarina há um jardim. Nas tardes verdes da Primavera, quando o sol vem iluminar Lisboa, ponho-me, em momentos de pausa, a olhar os velhos e crianças que ali se juntam como que unindo o fim com o princípio.A paisagem é quente, e bela, e serena, e propícia à meditação. Ali não chegam as vozes controversas de S. Bento e apetece, por isso, reflectir, talvez mesmo de olhos fechados, depois de ter absorvido tudo o que ela proporciona. Revejo, então, os velhos que no jardim cavaqueiam enquanto os netos correm até ao gradeamento que separa o Alto do casario que acaba por, em baixo, emoldurar o Tejo. Até mim não conseguem chegar as suas conversas que têm lugar a alguns metros da minha janela, mas julgo perceber pelos gestos que fazem e pelo que sei da velhice, neste momento, neste País, que o tema central das suas falas é esta terrível e injusta vida portuguesa dos nossos dias que, nem por nos dizerem que aponta para um futuro melhor, tranquiliza quem a vive hoje. E os velhos só quase têm o dia de hoje para viver. Eles sabem que são membros de uma terceira idade mas recusam-se, legitimamente, a pertencer à quarta idade - à idade dos fossilizados em vida. Trabalharam, quantos deles, desde sempre e como "conquista" deram-lhe um banco do jardim e um final de angústia. Foram eles que fizeram a Ponte, que abriram as estradas, que construíram a "pesada herança" de que nós, os mais novos, ainda vivemos. Que se lhes dá em troca? Pouco ou nada. Promete-se-lhe um Serviço Nacional de Saúde ao mesmo tempo que eles, mais do que ninguém, sentem a ameaça de perder o "assim assim" da Previdência. Enche-se a boca com os problemas da terceira idade e tardam as medidas que transformem, com justiça, o produto das suas pequenas economias, amealhadas durante anos e convertidas em títulos que, um Estado que se diz de Direito e não de direita, não traduz em rendimento. E um dia para velho é, não raro, um ano para novo. Fossilizar em vida os nossos pais e avós não é tarefa de gente. A quarta idade só deve começar na tumba. O trabalho dos da segunda idade deve evitar a Idade da Pedra regresse mais cedo do que o ciclo da vida impõe.


Lisboa que vejo no Alto de Santa Catarina é, mas não deveria ser, dissimulada. Parafraseando os paulistas quando se referem aos cariocas, lá em Terras de Santa Cruz, o Cristo-Rei, se alguma vez deixar de permanecer de braços abertos, deverá ser apenas para bater palmas por ter surpreendido os lisboetas, os portugueses do meu tempo, nessa coisa dura, velhaca, estafante, mas gloriosa - que é trabalhar.


Então, a quarta idade, em vida, será, graças a nós, apenas um pesadelo de uma tarde cinzenta neste Alto de Santa Catarina de cujo parapeito quero continuar a amar Lisboa.


* Tristeza dos tempos que se vivem, 40 anos depois, é o facto de a Lisboa, que, em Santa Catarina, era bela e fazia sonhar, ser, ali, hoje, como que uma alfândega de droga - porque, digo eu, alguém a não terá sabido manter outra coisa ...

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