quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Eu disse, tu disseste, ele disse (14): "Viajemos com MOZART"*







"Se Lisboa fosse Roma poder-se-ia dizer que, para os melomanos, Salzburg estava para Viena como Fátima para a Cidade Eterna - face aos católicos.

Salzburg é santuário da Música. E nem melomanos nem católicos têm que se amofinar com a imagem. Para melómanos católicos, porém, haverá momentos em que rezar a Nossa Senhora de Fátima ou ouvir Mozart os acaba por conduzir a estados de espírito muito semelhantes. Para se estar com a Virgem de Fátima não é obrigatório ir à Cova da Iria. Para sentir Mozart não é indispensável ir a Salzburg. Entretanto, conhecendo Mozart está a "ver-se" a cidade. Salzburg é Mozart. Na riqueza dos contornos da paisagem, no pitoresco dos seus inúmeros recantos.

Poderia, contudo, Mozart, tal como o conhecemos através da sua obra, ter nascido em Sevilha? E em Vila Real de Santo António? E na Guarda? E em Salzburg? Sim, em Salzburg. Só poderia ter sido em Salzburg, embora se diga que nos seus trabalhos há estilos italiano, alemão e francês. O que surpreende é que tal "só" tenha acontecido em 1756. O que "escandaliza" é que, pelo menos, todos os anos não tenha ali nascido um Mozart. O que é "provocante" é que os homens do nosso tempo deixem por lá circular automóveis tocando buzinas que nada têm de mozartianas.

Salzburg só pode ser Mozart. Porque tem a frescura da sua música, a elegância das suas sinfonias. Mozart com seis anos é já um Homem. Salzburg é brinquedo feito Cidade. O que Viena tem de largo, amplo, grande, tem aquela de pequeno, recatado, aconchegado. Tudo é perto é perto de tudo.

Os artistas plásticos são traidores relativamente a Salzburg. Que estão a fazer na Place du Tertre, em Paris? Que tem mais lhe dizer o Sacré-Coeur, com toda a sua beleza, do que a formosa cidade austríaca? E, no entanto, só aqui vi um pintor na rua. Vêem-se, sim, valha-nos isso, milhares de máquinas fotográficas a disparar por todo o lado. Benza-as Deus! Há tanta coisa para fixar. Agora é o rio Salzach, depois uma ponte, logo o casario, a seguir outra ponte, mais adiante uma torre pontiaguda e, finalmente, o verde resplandescente, o verde a que apetece, sem saber porquê, chamar glorioso. Por vezes, a cidade surge aconchegada pela montanha. Que não consegue ser agreste mas que, ajudada pelo clima, se cobre de um manta de vegetação, deixando cair pelas encostas como que franjas a que o sol, de quando em vez, concede tonalidades variadas fazendo de todo o berço de Salbzburg uma das paisagens mais belas deste descabelado mundo em que vivemos.

Em Salzburg sobe a gente no funicular até ao castelo e fica-se por ali como que embriagado, como que esquecido, observando o viçoso ondeado das colinas polvilhado, aqui e além, de casas isoladas ou de palacetes com as suas torres em forma de cabeça de nabo apontadas para o céu. Não muito além, é, então, sim, a verdadeira montanha que, em dia claro de uma tarde estival, se nos apresenta, à distância, em sucessivas gradações de cinzento, mais e mais suave à medida que se afasta dos nossos olhos. O que é verde, e é muito, assemelha-se a um colchão de penas assim fofo, macio, aveludado.

O chamado progresso já lhe fez, apesar de tudo, algumas partidas. Percorrendo com os olhos do alto do castelo, a paisagem circundante, lá aparecem as chaminés das fábricas e um ou outro edifício mais alto, mas que não chega para destruir a graça de tudo o que nos envolve e que os velhos telhados de ardósia alternam com o verdete das cúpulas dos palacetes e igrejas. É assim esta Disneylândia europeia que nos faz amar definitivamente a vida e acreditar em valores superiores.

Salzburg-cidade. Salzburg-gente. Salzburg-cidade-gente: uma mesma paisagem.
Um mesmo berço. Na maneira de viver, na graça de vestir, na glória de existir. Na humildade triunfante do ser grande, semelhando não passar de uma casinha de bonecas da infância da minha filha.

Ninguém nega que "Os Pequenos Nadas", de Mozart, são uma delícia. Pois, "Os Pequenos Nadas", por muito que tenham sido obrigados a ser parisienses, estão na Salzburg de hoje. A cidade, com efeito, é isso mesmo: o enlevo tocante de muitas pequenas coisas juntas que obrigam os nossos olhos a assumir o papel das abelhas face à flores, poisando ora numa ora noutra, recolhendo o néctar que, mais tarde, tentaremos, cada um à sua maneira, transformar em mel com que enfrentaremos o fumo das fábricas da civilização industrial que nos dá o pão por um lado e no-lo rouba por outro.

Há lugares no mundo que deveria ser "proibido" morrer sem se verem. Se isso fosse possível e quem mandasse fosse eu - Salzburg seria eleito. Mas os desígnios de Deus são, como se diz, insondáveis e, embora, quanto a mim, "tarde", fizeram ali nascer Mozart. E ao dar este génio ao mundo e aos vulgares mortais deste planeta a possibilidade de reproduzirem a sua música, trouxe Salzburg até casa de cada um. A tal ponto que um distraído conhecedor da cidade
poderia ser levado a interrogar-se, sem querer ouvir falar do chamado período clássico, e muito menos de recocó e coisas do género, se era Salzburg que tinha dado à luz Mozart, se era Mozart que, como por magia, teria feito "sair" da sua música a idílica paisagem de Salzburg.

Façamos todos, por isso, uma acessível viagem àquele "santuário": oiçamos Mozart de olhos fechados." 


* in À SOMBRA DA MINHA LATADA, de M.A.
























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