terça-feira, 26 de maio de 2015

MACAU: Macau ainda tem um gigante adormecido


by Ponto Final
Sónia Nunes
"Quase ninguém esquece o momento em que se apercebe de que está no meio de um acontecimento histórico. António Katchi soube que aquele dia, 25 de Maio de 2014, ia fazer a diferença em Macau ao decidir comprar uma garrafa de água. Os termómetros acusavam uma temperatura acima dos 30 graus quando, naquela curva à entrada da Rua do Campo, o jurista se distanciou por momentos do protesto em que estava a participar. No regresso, ficou surpreso: “Estava (achava eu) na cauda da manifestação. Julgava que, quando voltasse, já teriam passado todos. Mas não. Ainda havia muita gente.”
A diferença, nesta altura, era ainda apenas o número de pessoas na rua: “Nunca tinha visto. Mesmo nas manifestações mais participadas, como no 1º de Maio de 2007, não houve tantas pessoas”. A organização fala em 20 mil pessoas; a polícia diz oito mil. Facto: foi o maior protesto no território desde que a China assumiu a soberania sobre Macau, em 1999.
Os jovens destacavam-se entre a multidão que surgiu como um mar de t’shirts brancas, a cor escolhida pela organização para mobilizar manifestantes. A campanha do grupo pró-democracia Consciência de Macau foi feita na rede social “Facebook” e funcionou. Milhares de pessoas substituíram a foto de perfil por imagens onde se lia “Withdraw” – a palavra de ordem do protesto. Os manifestantes exigiam a retirada da “lei dos gananciosos”, assim chamada em alguns dos inúmeros cartazes, escritos sobretudo em chinês, mas não só.
“Ali Baba e os 40 ladrões”, “Não tem vergonha” e “Roubam o cofre do povo” foram as frases usadas em português para descrever a lei que Chui Sai On tentou ver aprovada três meses antes das eleições e que criava um pacote de regalias para os titulares dos altos cargos públicos. Exemplo: após o termo de funções, o Chefe do Executivo teria direito a receber 70 por cento do salário e, enquanto estivesse a exercer o cargo, garantia total imunidade.
“As pessoas ficaram muito revoltadas. Estavam em pleno desacordo. O campo pró-Governo convenceu-se que, face à vitória esmagadora nas eleições legislativas [de Setembro de 2013], conseguiria passar qualquer lei. Não foi o que aconteceu”, destaca Jason Chao, um dos líderes dos protestos.
Horas depois da manifestação de 25 de Maio, foi convocada uma reunião de emergência do Conselho Executivo. Os conselheiros (e deputados) Leonel Alves, Chan Meng Kam e Cheang Chi Keong avançaram com uma proposta. A saber: adiar a votação da lei, agendada para dois dias depois. Chui Sai On acabou por pedir a suspensão do processo – mas não conseguiu travar uma segunda manifestação.
Governo em período de graça
A intenção inicial dos manifestantes era cercar a Assembleia Legislativa com um cordão humano, mas acataram as ordens da polícia e o resultado, a 27 de Maio, foi uma concentração sem precedentes em Macau. Ao final da tarde contavam-se cerca de sete mil pessoas sentadas no relvado em frente ao edifício da AL. António Katchi estava lá: “Apanhei o autocarro, que vinha cheio, com muitos adolescentes. Quando chegou à paragem [da AL] ficou vazio. Foi quando me apercebi que também iam para a manifestação”.
Ao longo do dia, a partilha de informação sobre o que se estava a passar dentro e fora do plenário estava ao rubro no “Facebook”. Os deputados cederam ao pedido do Chefe do Executivo quando o que os manifestantes queriam era a retirada total do diploma. A multidão exaltou-se, pediu a demissão de Chui Sai On, gritou “lixo” (no trocadilho com a designação em cantonês da AL) e chegaram a ser arremessadas garrafas de plástico contra carros de deputados.
A campanha contra a criação de um regime de regalias para ex-governantes continuou nas redes sociais após a manifestação do dia 27: foram enviadas mensagens de repúdio aos deputados pró-Governo e feito um apelo ao boicote aos restaurantes do deputado Chan Chak Mo, que deu a cara pela proposta de lei.
Nos dois campos – tradicional e pró-democracia – vingava a tese de que as manifestações de Maio marcavam um ponto de viragem no activismo político. “Macau acordou”, era a metáfora usada, com políticos e comentadores a concordarem que a proposta de lei tina sido apenas a gota de água: a contestação foi vista como um chumbo ao primeiro mandado do Chefe do Executivo. Três meses depois Chui Sai On foi reeleito, nomeou Chan Chak Mo para o Conselho Executivo sem qualquer contestação e a tradicional manifestação de 20 de Dezembro pelo sufrágio universal juntou apenas uma centena de pessoas. Afinal, o que mudou?
“Se a substituição dos secretários não é uma mudança, então o que é?”, devolve Gabriel Tong. O vice-director da Faculdade de Direito da Universidade de Macau garante: “Quer o Governo, quer os cidadãos têm uma nova atitude perante a política. A sociedade está mais participativa e o Governo mais aberto à fiscalização pública”. “É uma coisa que, se calhar, não se vê, mas sente-se”, acrescenta.
“O surgimento de ondas de mobilização [social] está dependente do desempenho do Executivo”, destaca Eilo Yu, analista político e coordenador da em Governo e Administração Pública na Universidade de Macau. Em funções há pouco mais do que cinco meses, o novo Governo estará ainda a beneficiar do tradicional período de graça.
António Katchi e Jason Chao também admitem esta hipótese. No entanto, entendem que o factor decisivo para o abrandamento do movimento foi a resposta esmagadora que o Governo deu ao referendo civil sobre as reformas eleitorais.
“Repressão” do referendo inibiu movimento
Macau viveu um Verão quente no ano passado. Uma semana depois das manifestações contra o regime de garantias e pela primeira vez desde 1995, a vigília em memória das vítimas do massacre de Tiananmen fez-se no Largo do Senado. O falecimento de Ma Man Kei, um dos líderes históricos da comunidade chinesa e empresário próximo do Partido Comunista Chinês, levou ao cancelamento dos espectáculos do Dia Mundial da Criança, usados pelo Governo para desviar a vigília da principal praça de Macau. As cerca de três mil pessoas que assinalaram os 25 anos da repressão do movimento estudantil pró-democracia de Pequim não teriam cabido no Largo de São Domingos.
No final do mês seguinte, em Julho, mais de mil pessoas cercaram o casino Venetian para pedir aumentos salariais. Em Agosto, multiplicaram-se as manifestações contra a política de contratação das operadoras de jogo e houve ameaças de greve. Ao mesmo tempo, os líderes dos protestos de Maio tentavam organizar um referendo não oficial sobre a eleição do Chefe do Executivo por sufrágio universal.
A iniciativa do campo pró-democracia foi classificada como ilegal pelo Governo, que proibiu a votação física, que acabou feita através de 'tablets', depois de o Tribunal de Última Instância não ter viabilizado a colocação de urnas na via pública. A polícia apreendeu os aparelhos electrónicos, deteve cinco activistas e abriu uma investigação criminal contra Jason Chao por desobediência qualificada pela recolha de dados pessoais, fornecidos voluntariamente.
Apesar da pressão das autoridades, os resultados do referendo foram divulgados no mesmo dia em que Chui Sai On foi reeleito. Mais de 8600 pessoas participaram na votação e 95 por cento defenderam que o Chefe do Executivo devia ser eleito por sufrágio universal em 2019.
“Foi um sucesso relativo, tendo em conta a conduta repressiva das autoridades e que [os participantes] sabiam que podiam ser identificados”, avalia Katchi. “O movimento [pró-democracia] poderia ter evoluído mais se não tivesse havido esta restrição à liberdade de expressão e este exercício de autoritarismo”, admite.
Jason Chao reforça a ideia: “A mudança [instituída pelas manifestações de Maio] não foi radical. Mas podia ter ido mais longe se não fosse a campanha de opressão do Governo contra o referendo civil. Houve um enorme abuso de poder”.
Mas se, como diz Chao, as pessoas já “sabem o poder que têm” por que não reagiram nas ruas? “É preciso tempo para que a campanha pela democracia atinja o mesmo nível de indignação causado por uma lei muito concreta e obviamente injusta como aquela”, observa o activista. Por outro lado, continua Katchi, a população pode ter chegado a uma conclusão: “Se forem matérias que envolvem o Governo Central não vale a pena lutar porque Pequim não cede”. O desfecho da chamada Revolução dos Chapéus de Chuva de Hong Kong terá fortalecido esta convicção.
O que acorda a bela adormecida?
A teoria da conspiração para justificar a adesão aos protestos de Maio, numa terra pequena, conservadora e tradicionalmente patriota é esta: as manifestações foram incitadas pelo próprio Governo Central ou, pelo menos, por uma facção do PCC. Os valores dos subsídios previstos para ex-governantes terão chocado Pequim. A agência estatal Xinhua escreveu um artigo em que questionava a pertinência da proposta de Chui Sai On e destacava que em Hong Kong não havia um regime equivalente.
“Repudio essa tese”, contrapõe Katchi. “Estou convicto de que a manifestação atingiu a dimensão que atingiu pelo envolvimento espontâneo e consciente das massas juvenis de Macau”. Não é de crer, nota o jurista, que o Governo local avançasse, por exemplo, com um regime de imunidade para o Chefe do Executivo sem a concordância de Pequim.
Um estudo feito pela empresa de sondagens ERS e-Research Lab concluiu que o “Facebook” teve uma “enorme influência” nos protestos: “Os comentários e mensagens no Facebook persuadiram os utilizadores a acreditar no movimento e fizeram-nos participar. À medida que mais pessoas se envolviam, a voz da oposição [à proposta do Governo] tornou-se mais forte, tornando-se mais fácil aumentar as expectativas de se atingir o objectivo", referia-se no estudo.
“A última campanha do movimento democrático inspirou, sem sombra de dúvida, muitas pessoas de Macau, sobretudo as gerações mais novas”, confirma Eilo Yu. O académico não hesita quando diz que os protestos de há um ano “marcam uma nova era” para o activismo político em Macau. A prova? “Os democratas mais jovens substituíram os mais velhos e agitaram o movimento”.
Os deputados Ng Kuok Cheong e Au Kam San, membros fundadores da Associação Novo Macau, deram espaço a um novo líder: Sulu Sou. Aos 23 anos foi a voz em destaque nas manifestações de Maio e dois meses depois conseguiu ser eleito presidente da principal organização pró-democracia local. Era sócio há menos de um ano.
A renovação teve danos colaterais. Ng Kuok Cheong e Au Kam San decidiram separar o escritório de deputados da sede da Novo Macau, cortaram o financiamento à organização e admitiram divergências nas formas de actuação e nos temas a trazer para a ordem do dia: “Houve conflitos que eram escusados. Mas não podemos concluir que [a nova geração] não conseguiu liderar o movimento. Não depende só deles”, entende António Katchi.
“A maioria da população está ainda céptica em relação à eficácia política que tem. São precisas várias vagas de mobilização para inspirar as massas”, conclui Eilo Yu. “As manifestações vão ficar como um símbolo do despertar da sociedade civil. Estão na memória colectiva”, vinca Jason Chao.
A sociedade civil pode voltar a acordar? Gabriel Tong responde que “nada impede a existência de aspectos que não correspondem às expectativas das pessoas” e aponta para o abrandamento da economia.
O efeito da quebra das receitas do jogo nos cofres do Governo é uma possível fonte de conflito, avança Katchi. O secretário para a Economia e Finanças, Lionel Leong, admitiu já que pode avançar com um programa de austeridade. Em concreto, disse que o valor dos cheques à população poderá ser cortado. “Se o fizer vai ter gente na rua”, avisa o jurista, que admite também reduções noutros benefícios sociais, sem que a isenção do imposto complementar de rendimentos seja levantado às operadoras.
Mais: os problemas que há um ano fizeram com que o regime de garantias para ex-governantes fosse apenas o empurrão que faltava para a população tomar as ruas mantêm-se. Habitação, trânsito, saúde, segurança social – são “áreas onde os novos secretários são executores de velhas políticas”, resume Katchi.

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