sábado, 18 de abril de 2015

Flores com cheiro a ... a petróleo ...









"(...) O arquipélago artificial The World, ainda em construção, que forma o desenho do mapa-mundi, está vazio. Foi abandonado. De binóculo, consigo vislumbrar uma ilha autónoma, infértil na brisa salina, que seria a "Inglaterra". Foi aqui que os empreiteiros se propuseram a reconstruir o mundo. Criaram ilhas artificiais na forma das massas terrestres do planeta, com planos de vender cada "continente" como terreno para futuras edificações. Havia rumores de que o casal Beckham compraria a "Inglaterra". Mas quem trabalha próximo ao mega empreendimento conta que há meses não vê movimento na obra. "O mundo acabou", diz um sul-africano, aproveitando o trocadilho.


Por toda a cidade, projetos delirantes que antes estavam "em obras" agora estão em ruínas. Entre eles, uma praia com ar-condicionado e um sistema de resfriamento da areia para os usuários não queimarem os pés no longo caminho entre a toalha e o mar.

Os projectos concluídos um pouco antes da crise estão vazios e mal conservados. Quem não se lembra da inauguração do hotel Atlantis, no inverno passado, cujo festão consumiu 20 milhões de dólares e atraiu celebridades como Robert De Niro? Localizado numa ilha artificial em forma de palmeira, o hotel hoje parece um imenso sorriso banguela. O saguão central é uma cúpula monumental coberta com bolas cintilantes, sustentada por oito palmeiras de concreto. Bem no meio há uma estrutura de vidro reluzente em forma de intestino. Mas chove lá dentro: a água vaza do telhado e os azulejos estão caindo.

Uma sul-africana do departamento de relações públicas me mostra as suítes mais cobiçadas do hotel, explicando ser esse "o lugar mais luxuoso do mundo". Passamos por lojas que vendem anéis de diamante por 38 milhões de dólares. Uma das atracções do Atlantis são seus mega-aquários de tubarões, que nadam entre castelos e submarinos artificiais, submersos. O hotel tem mais de 1 500 suites, todas com vista para o mar. Na suite Neptuno, de três andares, os tubarões podem observar o hóspede deitado na cama. Coisas de Dubai.

Hospedado no hotel mais classudo da cidade, o Park Hyatt, sou o único cliente no restaurante. Um dos atendentes me diz ao pé do ouvido: "Antes isso aqui fervia. Agora não vem quase ninguém." Naquele lugar enorme, me sinto como Jack Nicholson no filme O Iluminado, o último homem numa casa abandonada e mal-assombrada.

O hotel mais celebrado do emirado - o grande ícone de Dubai - continua sendo o Burj Al Arab, construído à beira-mar em forma de gigantesco veleiro de vidro. No saguão, converso com um casal que mora e trabalha em Londres e visita a cidade há dez anos. Eles adoram. "Tudo é uma surpresa", contam. "Na última viagem, no início das férias, nossa janela dava para o mar. Mas antes de partirmos, uma ilha inteira já havia sido erguida à nossa frente."

Dubai não é apenas uma cidade vivendo além de seus recursos financeiros. O emirado também vive além de seus recursos ecológicos. Vemos gramados bem cuidados, com irrigadores espirrando água para todos os lados, turistas fazendo fila para nadar com golfinhos, pistas de esqui com neve de verdade construídas no interior de um shopping center, numa espécie de freezer do tamanho de uma montanha. Só que estamos em pleno deserto, num lugar que não tem água. Como isso é possível?

A própria terra está tentando repelir Dubai, secando e apagando a cidade do mapa. O novo campo de golfe que leva o nome de Tiger Woods precisa de 15 milhões de litros de água por dia para irrigação. O lugar é regularmente açoitado por tempestades de areia que enevoam o céu e escondem a linha do horizonte. Quando a areia baixa, o calor aumenta, abrasando tudo o que não estiver sendo constantemente irrigado. O dr. Mohammed Raouf, director de meio ambiente do Gulf Research Centre, não parece muito optimista: "Estamos num deserto e tentamos ignorar isso. Pura insensatez. Não dá para desafiar o deserto."

O xeque Maktoum construiu sua cidade-vitrine em um lugar sem água potável e sem água alguma, excepto a do mar. Ela conta com pouquíssimos reservatórios e acusa um dos índices pluviométricos mais baixos do mundo. Ou seja, Dubai bebe o mar. A água dos emirados, dessalinizada em fábricas espalhadas por todo o Golfo, é a mais cara do planeta. Segundo o dr. Raouf, caso a recessão se transforme em depressão, Dubai pode ficar desabastecida.

"Por enquanto, ainda temos reservas financeiras que pagam o transporte de água para o meio do deserto", disse ele. "Mas se nossa renda diminuir - se, por exemplo, o mundo encontrar outra fonte de energia além do petróleo, enfrentaremos um grande problema. Seria uma catástrofe. Dubai tem água só para uma semana." Apenas para sobreviver, um morador de Dubai necessita de três vezes mais água do que a média mundial.

O aquecimento global, acrescenta o dr. Raouf, piora ainda mais a situação. "Estamos construindo todas essas ilhas artificiais, mas se o nível do mar subir afunda tudo. Os engenheiros sempre garantem que está tudo bem, que essa possibilidade já foi prevista nos cálculos, mas não tenho tanta certeza assim."

Procurei investigar como o governo lida com um problema ambiental que já existe - a poluição das praias. Uma americana que trabalha num dos grandes hotéis vinha denunciando a situação em vários fóruns na internet. Contactei-a para marcarmos um encontro. "Não posso falar com o senhor", respondeu ao telefone, secamente. "Poderíamos, talvez, conversar sem que o seu nome seja citado", ponderei. Ela desligou o telefone na minha cara.

No dia seguinte, apareço no seu escritório. "Se o senhor revelar minha identidade serei mandada embora no primeiro avião", me adverte, antes de começarmos a caminhar pela orla. "As primeiras reclamações vieram de hóspedes que voltavam da praia. A água lhes parecia suja, e alguns contraíram doenças. Então escrevi para o ministro da Saúde e do Turismo, à espera de uma providência - e nada. Escrevi de novo e fui entregar as cartas pessoalmente. Nada."

Os hóspedes começaram a encontrar camisinhas, absorventes íntimos e até fezes boiando no mar. O hotel contratou uma empresa especializada em analisar a qualidade da água, e foi detectada uma enorme quantidade de coliformes fecais e bactérias. "Passei a recomendar aos hóspedes que evitassem a praia, mas todo mundo ficou revoltado - afinal, eles vieram passar férias aqui para isso."

A americana decidiu postar as informações nos fóruns virtuais de expatriados - e todos puderam entender o que estava acontecendo. Dubai havia crescido de forma tão desordenada que sua rede de esgoto não conseguia mais dar vazão. Os caminhões-tanque de colecta, obrigados a fazer fila durante três ou quatro dias nas estações de tratamento, cansavam-se de esperar e simplesmente abriam buracos no chão para jogar a água não tratada ali mesmo. Inexoravelmente, ela acabava indo directo para o mar. Mesmo depois que as autoridades reconheceram o problema, a qualidade não melhorou: a água ficou escura e fedorenta. "É resultado dos produtos químicos", aposta a americana.

Na minha última noite no emirado, já a caminho do aeroporto, parei numa pizzaria perdida em meio às autoestradas. O estabelecimento é idêntico ao Pizza Hut perto lá de casa, em Londres. Muitos dos produtos que consumo na Inglaterra também são fabricados por pessoas em regime de semi-escravidão só que a mais de 3 mil quilómetros de distância. Aqui elas estão a 3 quilómetros de proximidade, e às vezes nos esbarramos. Talvez seja por isso que Dubai me incomoda tanto.

Pergunto à moça filipina do balcão se ela gosta do lugar. "Gosto", diz ela, inicialmente. "Pois eu detesto", rebato. Ela concorda e desabafa: "Demorei alguns meses para perceber que tudo aqui é falso. Tudo. As palmeiras são falsas, os contratos de trabalho são falsos, as ilhas são falsas, os sorrisos são falsos. Dubai é como uma miragem. Você acha que avistou água, mas quando chega perto vê que é só areia."

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