domingo, 19 de abril de 2015

À conversa com o "último farrapeiro"

Rápido que a "terra", aqui, não sendo escassa, exige, mais do que ideias, contenção nas palavras.

Em período de armas nas mãos do Poder, como é que consegue sobreviver com dignidade quem, já de si, não vive farto?

Olha, rapidamente, em redor e, na simplicidade do seu apertado quotidiano, surge-lhe, quase milagrosa, a esperança do Ovo de Colombo, não sei se exactamente na forma que virá a adoptar, mas como que a aspirina, que tenta evitar a pneumonia que dizima: observar à volta, perceber o que pode ser sobra, farrapo, resto do melhor que houver, palmilhar léguas, se necessário, e juntar, por exemplo, farrapos que ninguém queira, ou sucatas aparentemente desprezíveis, e em espaços próprios, agregar NADAS que, juntos, possam saber a pão que os maus tempos, tempos de conflito, deram à eventual transformação possível. É tempo de farrapeiros. De gente humilde na acção, mas determinada, persistente no querer. A grande indústria vai percebê-la e comprar o que restar. É tempo de esperteza. É tempo de uma nova - e próspera - actividade. Lisboa, nomeadamente, conheceu-lhe o pregão: "quem tem trapos ou garrafas p'ra vender?..."


Na aldeia, vizinha de trapos novos, a sobrevivência introduz no mercado, introduz na luta por uma vida digna, aquela que hoje apelidaria de NOVA OPORTUNIDADE: armazenar, do pouco o melhor, para do quase nada insinuar o quase tudo. E dar-se à transformação aos melhores preços possíveis, mas que, abreviando, separando o trigo do jóio, fariam da morte possível, a sobrevivência desejável.

Onde? perguntar-se-á. A história conhecida remete para a simplicidade de uma aldeia, para a qual o "armazém" dos lusos nadas, foi razão de sobrevivência - com direito a estátua com história, quiçá, mal contada, mas vital para criar filhos e netos.

Foi um nicho. Há quem diga que ainda é. Mas, para já, é festa que chega à Universidade, no caso, da Beira Interior, onde, quando não é doutros graus académicos, é razão de licenciaturas que hão-de proporcionar melhor pão para os que precisaram de procurar nos restos o futuro a que tinham direito.

À pergunta: ainda há por aí algum velho farrapeiro?, a resposta veio pronta: sim! É José Varanda. É caso único?, perguntar-se-á. Não importa: é um caso que se deu à entrevista para renascer o orgulho de ser e estar - sem discussões de quem foi, de quem ainda consegue ser ou de quem do que nada fez tudo, ou ... ou ... O povo está lá, vai ser maioritariamente universitário - se continuar farrapeiro na acção.

José varanda, disseram-me, está vivo e ainda é farrapeiro à moda antiga. No Dominguizo.

A entrevista, no Dominguizo, a 11 quilómetros da Universidade da Beira Interior, centro de Novos Saberes, que estão a transformar relações. Melhor será dar-lhe a palavra:

- Ao que consta, o senhor é o último farrapeiro de muitos que se dedicaram a essa actividade. Porquê? À procura de quê? Qual o período rentável disso tudo e porque é que o senhor é tido aqui como o último farrapeiro?

- Na altura em que comecei (1951), andei 40 anos aos farrapos. A comprar ferro velho: metal, cobre, chumbo, zinco, alumínio, estanho, era o que aparecia. Comprávamos garrafas, papel, e nós é que separávamos tudo, aqui era onde se fazia a reciclagem do que havia. Era desde as cinco da manhã até à noite: comprávamos o material à porta das pessoas, dávamos gritos nas povoações (nas quintas não era preciso porque a gente chegava mesmo às portas) e então era "peles de coelho ou farrapos ..." Lá vinha alguém e depois lá apareciam mais: "ó tio farrapeiro, venha cá ..." Na Covilhã era como que a Universidade dos Farrapeiros ... Só ali chegávamos a andar aos 30 farrapeiros. Todos ganhavam dinheiro.

- Ser farrapeiro alguma vez deu para enriquecer?

- Tantos que enriqueceram!... Eu, graças a Deus, durante 40 anos, nunca andei a trabalhar com dinheiro de nenhum. Trazia sempre dinheiro no bolso. Quantos andaram com o saco às costas: o José de Almeida, o João Alves Pais, etc, eles todos arranjaram dinheiro. Eu nunca comprei nenhum carro, mas ainda agora tenho muito material para vender ... Aquilo é um vício, uma pessoa não podia ver um bocado de metal ou de cobre e tinha que o apanhar logo ... Aquilo era dinheiro ... Mas, às vezes, passava por lá sacrifícios até ... até ... Com dinheiro no bolso e, às vezes, a querer comer e não haver comida ...

- Que produtos é que ajudaram mais à formação das riquezas de que tanto se fala?

- Era o metal e o cobre.

- Há no Dominguizo gente que alguma vez se possa ter considerado rica graças aos farrapos?

- Agora já morreram ... Mas ainda os há por aí ... Um deles é o Silvestre Gaspar: nos farrapos e nas sucatas. E o Manel Gaspar a mesma coisa ... Mas p'ra isso é preciso ter DOM ...

- Alguma vez o senhor se considerou um homem materialmente rico ou limitou-se a "encher o bolso" doutros que o não confessam?

- Nunca me considerei rico, mas nunca andei a pedir pão para comer. Sempre tive dinheiro para trabalhar. E quando ía vender nunca vendia tudo ...

- Fez, laboralmente falando, ao longo da vida, o que mais gostava ou também o que ajudava a viver melhor?

- O que eu mais gostava era ser farrapeiro e ninguém mandar em mim ... Ainda mesmo agora.

- A estátua ao Farrapeiro foi justa? Ou é apenas o exemplo de
um trabalho suado?

- Então não foi!... O Dominguizo era conhecido a nível nacional, do Minho ao Algarve, pela terra dos farrapeiros.

- Mas então o que é que no Dominguizo se poderia ter feito e não fez apesar das fortunas de que se fala, provenientes dos farrapos?

-Então e ficavam sem o dinheiro?... Aí é que está ... Mas empregaram cá muita gente. Havia mais de 100 ou 200 pessoas a trabalhar nos farrapos.

- O sucateiro veio substituir, enquanto negócio, o lugar do farrapeiro?

- Esse anda à espera que lhe digam onde estão as coisas que é p'ra ... Nós tínhamos que andar a procurar ... Andam de camioneta, não andam como eu andava, das 6 da manhã às 7/8 da noite ... Com a tralha às costas: comprava aqui, vendia além .. Sempre p'ra dentro do saco ...

- Do que é que vive hoje um antigo farrapeiro?

- A maior parte deles já morreu. Há aí alguns que andaram por lá, mas ... Uns foram para França, etc. No Dominguizo era tudo farrapeiro ... Alguns foram para teares, para a tecelagem.Toda agente se governava.

- Quem era na terra um tal sr. Neves de que muitos falam, mesmo que eu o não refira?...

- Sei que trabalhava muita gente para ele, e era a casa maior cá do Dominguizo. Tinha terrenos nos Vales, no Barco, no Telhado, na fronteira, ao pé de Segura e ... na Covilhã, onde era dono de uma fábrica de tecelagem. Aqui tinha um lagar.Era pai de dois solteirões: o menino António e o menino Zé.

- E o que é que se sabe de um tal sr. Silvestre, de que há muito não oiço falar?

- Esse era o antigo dono da casa onde estava o sr. Neves.

- De que é que vive hoje o Dominguizo?

- Há alguns que ainda andam com as camionetas a ... Ainda os há por aí ...Um deles é o Silvestre Gaspar, nos farrapos e nas sucatas. E o Manel Gaspar, a mesma coisa... Mas para isso é preciso ter dom ...

- Alguma vez se considerou um homem materialmente rico ou limitou-se a "encher o bolso" doutros que o não confessavam?...

- Nunca me considerei rico, mas nunca andei a pedir pão p'ra comer ... Sempre tive dinheiro para trabalhar. E quando ía vender nunca vendia tudo ...

- Fez, laboralmente falando, ao longo da vida, o que mais gostava de fazer ou também o que o ajudava a viver melhor?

- O que mais gostava de fazer era ser farrapeiro e de ninguém mandar em mim ... Ainda mesmo agora...

- A estátua do farrapeiro foi justa? Ou apenas o exemplo de um trabalho suado?

- Então não foi?!... O Dominguizo era conhecido a nível nacional, do Minho ao Algarve, pela terra dos farrapeiros.

- Então o que é que no Dominguizo se poderia ter feito e se não fez, apesar das fortunas de que se fala provenientes dos farrapos?

- Então e ficavam sem o dinheiro?... Aí é que está ... Mas empregavam cá muita gente. Havia mais de 100 ou 200 pessoas a trabalhar nos farrapos.




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