quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Macau: onde se fala do culto do jazz na China
















“Saber cantar o ‘Summertime’ não te torna um cantor de jazz”

 by Ponto Final
A viagem de Ines Trickovic pelo jazz começou há 17 anos a ouvir Ella Fitzgerald, Tom Jobim e Miles Davis. A cantora prepara-se para gravar novo disco em Nova Iorque e criar um show de cabaret-varieté em Macau.
Cláudia Aranda
O culto pelo jazz na China está a crescer e a “desenvolver-se e muito rápido, especialmente em Pequim, Xangai, Hong Kong”, diz em conversa com o PONTO FINAL a cantora de jazz Ines Trickovic, 32 anos, a viver em Macau, onde se prepara para criar um show de cabaret-varieté, que inclui diversas expressões artísticas, musicais e circenses.
“Não há muitas pessoas em Macau dedicadas às artes a tempo inteiro, fazem-no como um hobby, há artistas, uns na comunidade portuguesa outros na comunidade chinesa, mas não colaboram uns com os outros de forma intensa. Quero produzir um show de cabaret que inclua artistas diferentes de áreas diversas, acrobatas, palhaços, malabaristas, comediantes, músicos, de diferentes comunidades, num show de ‘varieté’. Conheço muitos artistas, alguns fazem coisas fantásticas, mas estão todos a fazer as suas coisas isolados, penso que um show como este poderia juntar os artistas e fazer espoletar uma coisa maior e melhor, é o que estou a planear para 2015”, explica a cantora croata, que decidiu instalar-se há pouco mais de dois meses no território, onde conheceu o seu actual marido, Ao Ieong Weng Fong, fotógrafo, realizador e produtor de cinema.
“As pessoas na China estão muito curiosas, todos os concertos onde actuei tinham a casa cheia, o jazz é algo muito novo – não no caso de Xangai ou Hong Kong, onde existe tradição. As pessoas estão fascinadas e a China está aberta a todas as formas de arte, em dez anos tudo vai ser diferente, porque as coisas aqui crescem muito rápido, há pessoas a organizar festivais com muita paixão”. É o caso do festival de Beishan, em Zhuhai, exemplifica a artista. Ines lamenta que em Macau não haja neste momento clubes de jazz e que a cena actual do jazz esteja um pouco parada, mas sente que “há muita coisa que se pode fazer”. “Há público, pessoas interessadas, que gostam de jazz, todos os concertos em que actuei em Macau estavam cheios, penso que as pessoas estão sedentas de música.”
A procura por cantoras de jazz de qualidade é, por isso, cada vez maior. “Há cantoras em Hong Kong, Xangai, Shenzhen, mas é tudo muito novo e estas cantoras interpretam sobretudo repertórios de jazz, mas isso não as torna cantoras de jazz”, explica a artista, que também dá aulas de canto em Macau.
“A improvisação é uma das competências essenciais de um cantor de jazz, temos de ter cuidado para não confundir. Saber cantar o ‘Summertime’ ou o ‘Blue Moon’ não te torna um cantor de jazz. Para isso é preciso cantar no ritmo e no ‘groove’ do jazz, improvisar toda a canção sem cantar a letra, reproduzir a canção imitando os instrumentos”, acrescenta a artista e professora de canto.
Do jazz ao dueto com o fadista Camané
A viagem de Ines Trickovic pela música jazz começou há 17 anos na Croácia, a ouvir Ella Fitzgerald, Tom Jobim ou Miles Davis. Tinha 15 ou 16 anos, o país ainda se recompunha da guerra que devastou a antiga Jugoslávia, entre 1991 e 1995, e Ines não sabia sequer o significado da música “Garota do Ipanema”.
“O meu interesse por bossa nova começou muito cedo. Tinha uns 16 anos quando recebi uma cassete de Tom Jobim, Gilberto Gil e outros brasileiros comecei a ouvir e a ouvir. Acho que durante dois anos ouvi as músicas, traduzi-as e aprendi o português”, conta Ines, que nunca esteve no Brasil.
A artista aprendeu a cantar por ela mesma. “Os grande cantores de jazz eram auto-didactas”, explica Ines, que diz que começou a praticar ouvindo os instrumentistas. “Ouvia Miles Davis, concentrava-me no trompete, e repetia e memorizava, ouvia a parte improvisada por ele, escrevia a música, repetia. É assim que se começa a aprender a improvisar, mas é necessário ouvir milhares de instrumentistas, intérpretes de guitarra, de saxofone, piano, é um processo demorado”.
Em Macau não foi há muito tempo que o público a viu cantar em dueto com o fadista português Camané, em 2013 por altura do festival literário de Macau, Rota das Letras. “Vi o concerto dele, improvisámos juntos [na Casa Garden], e foi lindo. Ele é um artista maravilhoso, é um daqueles artistas únicos que canta com alma, é tão aconchegante, ouvindo-o passamos a acreditar em tudo o que canta, porque é cheio de sentimento, foi algo de muito pessoal e suave”.
A música entrou cedo na vida de Ines Trickovic, porque “está na cultura” do seu país. Toca acordeão e piano, mas considera não ser “boa instrumentista”, porque nunca frequentou uma escola de música. Ainda era uma criança quando rebentou a guerra, em 1991. “Foi o caos, tinha oito anos e a vida parou”, diz a cantora. Dubrovnik, sua terra natal, lugar património mundial da UNESCO, esteve debaixo de fogo dos sérvios e do exército popular da Jugoslávia e das forças de defesa da Croácia na guerra pela independência desta região da antiga Jugoslávia, que se desmoronava. Durante os bombardeamentos a população tinha de se recolher em abrigos subterrâneos. “Uns dias tínhamos escola, outros não. Não tínhamos água, electricidade, o pior foi sobreviver três meses sem água”. No abrigo, sempre que alguém trazia uma guitarra Ines era chamada a cantar. “A guerra foi uma grande confusão. Ambos os lados acabaram por perder, toda a gente perdeu, não houve vencedores naquela guerra”, diz.
Hoje Ines Trickovic é uma das mais prestigiadas cantoras de jazz do seu país. Este ano recebeu o Prémio de Álbum do Ano na Croácia, designado por “Porin”, o equivalente ao “Grammy” croata.
Desde 2011, ano em que visitou a China pela primeira vez, é visita habitual de concertos e festivais de jazz no território e em toda a região: Festival Internacional de Jazz de Hong Kong, Shenzhen Oct - Loft Jazz Festival e Festival de Música do Mundo de Beishan, em Zhuhai.
A cantora gravou o ano passado “Runjic in Blue”, considerado pela crítica croata como um dos mais “avant-garde” álbuns de jazz do ano. Em Maio actuou na série de concertos “All Souls at Sundown”, acompanhada pelo pianista de jazz Aaron Goldberg, na Unitarian Church of All Souls, em Manhattan, Nova Iorque.
A cantora, que é representada pela New York Artists Management, prepara agora um novo álbum com o o saxofonista Brian Girley, músico de jazz baseado em Nova Iorque. Trata-se de “um projecto pessoal, nosso”, que vai incluir músicas compostas por Ines Trickovic e Brian Girley, que a artista conheceu no festival de Shenzhen. “Desenvolvemos as canções online, via e-mail, por skype, trocamos canções, falamos, alteramos - é como trabalhamos. Agora está na altura de nos encontrarmos na mesma cidade para gravar”. A artista planeia ir gravar este disco entre Abril e Maio de 2015 a Nova Iorque, onde vai também actuar numa série de concertos.

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