terça-feira, 15 de abril de 2014

Recortes do dito e do feito (48) - MACAU 1984


À frente, a cadeia central, de 1912. Tem uma cor deslavada, a atirar para o rosa-velho. Por todo o lado, como é próprio, grades e arame farpado. E também muitas luzes e alguns guardas, como dizem que tem que ser.

Encimando as paredes exteriores, uma espécie de ameias, a dar o toque de fortaleza ou de muralha da China, não sei. Ah! tem um recinto para o basquetebol dos bem comportados. Entretanto, como não podia deixar de ser, no mastro de honra, vê-se a bandeira portuguesa, um tudo nada estragadota na parte veremelha, mas, quer se goste, quer não, muito viçosa junto ao mastro, que está direito, desempenado e "de pé, como as árvores",

A pouca distância deste edifício público nacional, onde se redimem os pecados locais visíveis, está o cemitério. Bonito. Bem tratado. Com muito mármore e marmorite. Mas igual a tantos outros. Contudo, lápidas em português - várias; inscrições em cantonês - muitas.

No meio deste cenário, estou eu ("penso, logo, existo"), vivo, livre, imaginando para além dos montes fronteiros, os mistérios da China comunista. Coisa a a provocar "peregrinação interior": prisão de um lado, cemitério do outro. China ao longe, mas, ainda assim, a dois passos. Os chineses acham que o meu poiso é lugar de azar ...

É então que me decido a ir à varanda, olhar a rua e ver Macau, tal como sempre o conheci - tranquilo, variegado, grande em poucos quillómetros, vivendo em camisola interior sem mangas e trabalhando a toda a hora, sob o olhar atento das divindades tutelares locais, só se preocupando com tufões quando eles, de facto, de aproximam.

Lá no fundo da rua, entrementes, um homem parece dormir acocorado, em equilíbrio, no assento de uma simples cadeira, enquanto a uns dez metros dele, alguém gesticula, indiferente aos transeuntes, fazendo ginástica (ou dançando?), em jeito de karaté, mas ao retardador.

Há na atmosfera um perfume a pivete queimado e aos aromas suaves da comida chinesa.

Recuo no tempo e, cheiro por cheiro, assalta-me a fragância de especiarias distantes e tão perto. Estremeço. A bandeira nacional está no mastro da prisão, mas, vendo bem, igualmente a centena de metros acima, na Fortaleza do Monte e, num esforço de memória, também na Misericórdia, nas Obras Sociais de Macau, no Palácio do Governo, e, sobretudo, naquela escola, ali, ao descer da calçada, e a seguir na outra mais à frente, e de novo naquela à beira do casino principal do território, e depois e depois e...depois na outra...

E ainda mais naquela mais adiante.

Vou descer deste vigésimo andar, novo em folha, em que me acho e donde muito vejo e pouco oiço: pode ser que encontre na rua quem me possa explicar em português como se vive agora naquela terra do Nome de Deus. Mas, antes de mais, permitam-me que vá conversar a sós com Camões - meu vizinho, ao que dizem - que, apesar de cego de um olho, não é mouco e deve estar ao corrente de coisas de Macau que nunca mais acabam ... Aliás, se querem saber, é nele que, à força de ter andado de café em café, passei verdadeiramente a acreditar.

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