sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Crónica de um Presépio com figuras do quotidiano*

* dedicada a minha filha e publicada na imprensa em Dezembro de 1990. Recuperada, posteriormente, para integrar um possível livro de Cartas à Minha Neta, ainda por publicar. Sem discriminações de qualquer espécie.



"Natal é Presépio.
Natal foi aquele dia em que, no berço da maternidade, primeiro, e, logo a seguir, nos braços da mãe, baboso, a vi, espelho meu, e, quase pateticamente, desatei correr e a dizer a toda a gente, como se isso já fosse possível, que ela, tranquila, me olhara nos olhos.

De Natal foram todos aqueles maravilhosos dias em que, mais tarde, a fui buscar ao jardim-escola e que, a caminho de casa, quilómetros feitos metros, ela, bibe aos quadrados, me cantou a cantiga sempre nova que aprendera horas antes, no meio de outras crianças.


De Natal vestiram-se todas aquelas manhãs que, sentada à porta do meu quarto, amarrotou o vestidito para, à saída, me dar um beijo e ouvir a minha voz.


De Natal foi aquele dia em que, pela primeira vez, na Academia de Música de Santa Cecília, a ouvi tocar piano e, envergonhada, a vi agradecer aplausos de ternura.


De Natal foi aquela tarde em que, pequenita, mas consciente, a observei à distância, lá no estrado onde, solenemente, lhe perguntavam a tabuada, que sabia de cor e salteada. E quem tinha sido o primeiro rei de Portugal ... E quem tinha descoberto o caminho marítimo para a India ... E tantas, tantas coisas ...


De Natal foram aqueles dias em que, sentados no chão, fizemos do seu quarto uma cabina de som a sério e gravámos impressões acerca de uma visita ao Museu Gulbenkian, acabada de efectuar, com a turma do prof Adérito.


De Natal foram, de mão dada, as férias na Florença de Giotto. Na Veneza dos canais. No Vaticano de Paulo VI. Na Londres dos teatros. Em Paris da Place du Tetre. Em Munique do Museu da Técnica. Em Salzburgo de Mozart. Em Viena, na Ópera e na Grande Roda. Nos Açores, naquela capelinha perdida na verdura em dia de festa.


De Natal foi aquela tarde cheia de jovens, sadios e aprumados, na sala do teatro em que, no palco, recebeu o seu diploma de curso.


De Natal foram todos os dias em que, saudável, a vi crescer.


De Natal são sempre grande parte destes, inúmeros e vários, dias de pai, como tantos outros, grisalho e fatigado, mas avô de uma cana, a quem o mundo acena com novo sorriso - para que de Natividades a terra não descanse e, se possível, esqueça os intervalos em que, longe do Presépio, desalmados e ignorantes, que também os há, o obrigam, contra sua vontade, a não sorrir. 


Bom Natal para todos - pais saudosos e avós esperançados. O Menino anda por aí."


Dezembro de 1990


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