sábado, 14 de setembro de 2013

Selecta de uma antologia esquecida (2) *

DINIS MACHADO

"Tirava a cera do ouvido com a unha do dedo mínimo da mão direita, depois metia o polegar debaixo da unha do dedo mínimo, tirava de lá a cera, desfazia a cera entre o polegar e o indicador, massajando levemente, tinha o Rato Mickey tatuado no peito, estava sempre a dizer ao rapaz para se pôr em guarda, levanta essa guarda, campeão, contava histórias de combates entre campeões mais ou menos homéricos, acrescentava-lhes sempre novas tonalidades romanescas, demorava-se de preferência na luta entre um Bowen e um tal Burke, foram 110 assaltos, campeão, sem tirar nem pôr, sabes durante quanto tempo lutaram?, o senhor Bowen e o senhor Burke lutaram sete horas e dezanove minutos, deu para tudo, até os espectadores desmaiavam, uns de cansaço, outros de emoção, estiveram mais de sete horas a olhar o ringue, à espera de ver o Bowen despachar o Burke ou o Burke despachar o Bowen, dois gigantes toma lá dá cá, ao fim daquele tempo todo ainda lutavam como se tivessem começado naquela altura, apenas um pouco mais lentos de movimentos, uns apostavam no Burke, outros no Bowen, dizem que um espectador apostou a casa no Burke, outro apostou no Bowen as economias de trinta anos, outro tinha os olhos cheios de lágrimas e dizia se algum deles perder é porque Deus não é tão grande como dizem, ainda a luta ia em metade e parecia que tinha começado não se sabia quando, Bowen e Burke cobertos de sangue vagueavam ao acaso no ringue, à procura do canto, quando acabava o assalto, mas de pé, campeão, sempre de pé, não havia nada que deitasse abaixo, quando caíam era para se levantarem, vinham do tapete ainda mais homens do que para lá iam, e coisa mais bonita e mais brava, mais tê-los no seu lugar que a gente pode supor, o combate mais comprido de toda a história do boxe, um combate empatado porque ambos eram invencíveis, isto foi em 1893, não é patranha nenhuma, não tem nada a ver com muitas histórias da carochinha que para aí há. (...)"

* fonte: Homo Ludicus de Manuel Sérgio/Noronha Feio

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