terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Apontanetos: rever a Invicta *


























Nado e criado em Lisboa, filho do Tejo, de Alfama e também da Madragoa e Bairros Altos que embriagaram gerações de alfacinhas e passantes, é ao Porto que vou revigorar o espírito lusíada que me resta. Desembarcado no centro da cidade dirijo-me então para os Clérigos e meto-me, invariavelmente, pela rua de S. Bento da Vitória. Detenho-me por ali a olhar a roupa estendida e os prédios espigados, de convívio obrigatório, encostados uns aos outros como que receosos das camarárias incúrias, sem chetas locais que bastem para avenidas, quanto mais para coisas velhas.

Encosto-me à parede da igreja de S. Bento da Vitória e, não sei porquê, parece-me ouvir, por sobre os falares gritados do mulheredo, as vozes de Camilo e Júlio Dinis. Sonho acordado. De seguida, deixo-me escorregar pelas escadas da Vitória onde alguém pragueja às moscas que lhe invadem o aconchego, abandonado que foi o bailarico sobre detritos sem data. Aqui é preciso cuidado ao passar, que os degraus são já de outras épocas, a corrosão do tempo não perdoa e as edilidades são mais lentas nas reparações do que os sapatos dos utentes no seu incessante e implacável pisar. Encontro-me agora no largo de S. Domingos, Douro à vista. Falam alto as pedras, enquanto o rio, carícia após carícia, procura, com meiguice, impor silêncio. Julgo ouvir, entretanto, à beira do Muro dos Bacalhoeiros, o vozear de mercadores.

"Ceuta?..." Engano-me. É a história que aprendi em pequeno que me segreda coisas de encantar.

Vagueio, ébrio de emoções e volto as costas ao Douro. Meto-me pela rua da Alfândega, depois de uma breve conversa a sós com a Senhora do Ó. É sábado. Quero confraternizar com o Infante, mas dizem-me que não posso, que essa coisa de convívio histórico é de segunda a sexta, que os senhores da Casa são de carne e osso como os demais e foram descansar. Fico desolado com esta Cultura que repousa aos fins-de-semana e dou um salto ao Palácio da Bolsa, em que já não entrava há uma dezena de anos. Avanço dos Descobrimentos para o século XIX. Sorrio. Aquele é o Palácio da Bolsa não é o Mercado do Bolhão ("valha-me Nossa Senhora: eu só queria ganhar o que estou a perder ... Ó freguesia, olhai a lindeza!..."). Do outro lado da rua acabo de ver num interior o retrato a sépia, seráfico e salpicado nos bigodes de saudações mosqueiras, do fundador de um estabelecimento que o tribunal da actividade, certamente, ajudou a legar aos vindouros. Subo, por fim, a escadaria da Associação. Desfaço-me de vinte e cinco escudos para as despesas de manutenção e oiço, atento, as explicações do contínuo-guia. Deslumbro-me com Veloso Salgado e, de sala em sala, chego ao Salão Árabe. Uma maravilha! Este Porto!... "A riqueza dos povos é a sua Cultura" - acode-me a frase feita, enquanto me assalta a certeza da penúria quotidiana que nos avassala.

Entrementes ...

- A nossa salvação é que estas salas não têm rodas ... - murmura o meu anfitrião.

- Como? ... - interrogo, receoso.

- Sim! Se tivessem já não eram nossas ... - remata, com um misto de alívio e preocupação.

Finjo que não oiço e tomo um táxi para Campanhã, deixando invicta a cidade que sempre o foi. "Por não ter rodas", no dizer do contínuo-guia do seu Palácio da Bolsa - sem valores, que esses, no mínimo, têm pernas..."

* crónica publicada em 1983, num jornal de Lisboa, com outro título, naturalmente ...

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