quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Do lido, o sublinhado ( 12 )












Ramalho Ortigão in As Farpas

"Excelentíssimo Estado e meu amigo: - Há cinquenta anos que para aqui me acho, tendo pago sempre a V. Exa. a quantia que combinámos quando fez comigo o contrato de eu lhe mandar o imposto para Lisboa e V. Exa. me mandar para aqui a civilização. Até à data nada recebi.

Os deputados que para aí tenho expedido à custa de muita intriga, de muito dinheiro, de muito copo de vinho e bastantes bordoadas distribuídas com as listas à boca da urna, nada remeteram para cá senão discursos cheios de exclamações e de erros de gramática. Graças aos efeitos de quarenta anos de eloquência sobre os trabalhos da terra e sobre as obras do rio, este cresceu repentinamente com as últimas chuvas, invadiu-me a casa e levou-me tudo: móveis, roupas, géneros, ferramentas.

Acho-me na derradeira miséria.

Antigamente, antes do contrato que V.Exa. fez comigo e a que já aludi, o dinheiro que eu ganhava, em vez de o mandar para Lisboa, entregava-o aqui assim ao morgado, ao capitão-mor e ao convento. Mas o morgado e o capitão-mor, se por um lado me arrancavam a pele como V.Exa. hoje faz, por outro lado eram meus amigos. Eram meus compadres, padrinhos dos meus filhos; davam-lhes as broas e as amêndoas pelas festas do ano, esperavam pelas rendas, punham os varapaus argolados dos seus moços e os deles próprios ao serviço da nossa causa, quebravam todos os ossos do corpo aos corregedores, aos alcaides, aos portageiros e aos almotacés quando estes se faziam finos, matavam-nos de quando em quando a criação ou davam-nos chicotadas quando estavam bêbados, mas em seu juízo eram bons homens e tinham sempre as portas e os braços para nos acudirem, para nos protegerem, para nos ajudarem. Os frades rezavam - o que, se não fazia bem, também não fazia mal; e esta é a diferença que distingue os frades dos seus sucessores, os deputados: o frade rezava, os deputados intrigam."

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